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Vira-latismo

Os astros se alinham em favor do Brasil, talvez até por falta de concorrentes. Vamos aproveitar a janela favorável, ou desperdiçar mais esta oportunidade?

A surpresa positiva com a arrecadação em janeiro e fevereiro foi recebida com discurso em prol de mais gastos, entre outras intervenções inadequadas (Jenpol/Getty Images)

A surpresa positiva com a arrecadação em janeiro e fevereiro foi recebida com discurso em prol de mais gastos, entre outras intervenções inadequadas (Jenpol/Getty Images)

Publicado em 22 de março de 2024 às 06h00.

Já se passaram 28 anos e ainda revisito a pergunta de Eduardo Giannetti a Caetano Veloso no Roda Viva: “Será possível o Brasil se civilizar e, ao mesmo tempo, preservar nossa alegria típica, a alma selvagem, a vitalidade iorubá?”. Nas palavras de Giannetti, um imortal entre os grandes pensadores brasileiros, a civilização entristece as pessoas. Na arte, como devidamente manifestado no Tropicalismo, essa convivência de Dionísio e Apollo seria harmoniosa e até mesmo alcançada com facilidade. Mas… e na vida real?

Não há comprovação empírica de que, de fato, a civilização entristece as pessoas. Em seu livro O Novo Iluminismo, Steven Pinker apresenta longa argumentação, sob o apoio dos dados, de que países mais ricos e desenvolvidos são, no geral, mais felizes. Também não é verdadeiro o mito de que a avançada Suécia tem a maior taxa de suicídios do mundo. Apesar da nuance, os dados apontam, sim, para um índice de felicidade no Brasil (a rigor, para toda a América Latina) superior ao que tipicamente seria visto em um país de grau de desenvolvimento semelhante ao nosso.

A essência da investigação de Giannetti está preservada. O que acontece no Brasil para que tenhamos níveis mais elevados de felicidade? E se Vinícius está certo ao dizer que “é melhor ser alegre que ser triste”, será que não teríamos um modelo a oferecer ao mundo? Estamos mesmo alijados do protagonismo global, ou poderíamos arriscar voos mais altos?

Recuperando Nelson Rodrigues, nosso complexo de vira-lata, a inferioridade autoimposta pelos brasileiros, teria origem na tragédia do Maracanaço, em 1950, na derrota contra o Uruguai. Poderíamos até ter superado o vira-latismo no futebol com a vitória da Copa de 1958, mas a essência de uma autoimagem inferiorizada, menor diante do resto do mundo e com pouco a oferecer-lhe, continuou impetrada na sociedade.

O próprio Giannetti inverte o argumento: da crítica ao elogio! O Brasil é, sim, vira-lata, mas isso deveria conferir-lhe vantagem, e não inferioridade perante o resto. Somos essencialmente mestiços, um grande sincretismo, uma aceitação amistosa e acolhedora do diferente. Essa é uma virtude rara, que, sendo a alegria a verdadeira prova dos noves, deveria compor nossa pauta de exportação! A vantagem brasileira é algo perene e estrutural, mas goza de oportunidade especialmente interessante.

Começo pela grande questão geopolítica global: a “Segunda Guerra Fria” ou a “Paz Quente entre Estados Unidos e China”. A exemplo da guerra fria original, agora também há uma série de disputas: na esfera ideológica entre democracias liberais e autocracias centralizadas; no campo tecnológico por semicondutores, inteligência artificial e carros elétricos ou autônomos; no campo econômico por mercados consumidores e zonas de influência via corrente de comércio.

Há poucas nações capazes de dialogar e manter uma corrente de comércio (e lembre-se que a troca é elemento de pacificação e aproximação) com ambos os países. O Brasil, com sua sólida tradição de neutralidade e pacifismo, pertence ao seleto grupo.

Diante do recrudescimento das tensões geopolíticas e das rupturas nas cadeias produtivas observadas na pandemia, todo o supply chain global tem sido reorientado, nos chamados nearshoring ou friendshoring. Precisamos reindustrializar o Ocidente e ter parceiros comerciais confiáveis, alinhados aos valores consagrados pelo Iluminismo.

Nesse ambiente, energia e metais básicos fazem grande diferença. O Brasil está entre os maiores produtores de petróleo do mundo e com curva ascendente de produção até 2030, além de dispor de uma nova fronteira exploratória possível na Margem Equatorial. Em paralelo, não há recrudescimento das tensões geopolíticas desacompanhado de militarização, por sua vez demandante de minério de ferro e aço, abundantes por aqui.

Cumpre também notar que, apesar de a taxa de crescimento populacional estar diminuindo, a adição absoluta de habitantes da Terra será a maior já observada nas próximas décadas. Como gosta de lembrar o brilhante amigo Marcos Troyjo, em 25 anos a população mundial vai passar de 8 bilhões para 10 bilhões. No ano do nascimento de -Jesus Cristo, havia cerca de 150 milhões de habitantes neste planeta. Ou seja, demoramos quase 2.000 anos para ter o mesmo crescimento líquido de pessoas no mundo que teremos em 25 anos. É muita gente chegando, e esse pessoal vai precisar comer. O Brasil é o maior exportador agrícola do mundo. À liderança em vendas externas de café verde, carne bovina, frango in natura, celulose, sopa em grão e açúcar somou-se mais recentemente também a primeira posição em milho. O algodão pode entrar para a lista em 2024.

E não há como escapar, claro, ao tema da transição energética. Mais de 85% da matriz energética brasileira vem de fontes renováveis. Com muita geração hídrica, um Sol para cada um e morros de ventos uivantes, além de etanol, hidrogênio verde e biomassa, estamos entre as matrizes energéticas mais limpas de todo planeta. Em paralelo, diante do grande (e merecido) apelo da Amazônia, podemos coordenar e liderar a formação de um mercado de carbono global, devidamente regulado, líquido, institucionalizado e transparente. Os astros se alinham em favor do Brasil, talvez até por falta de concorrentes.

Estamos claramente diante de uma encruzilhada. Podemos aproveitar a janela favorável ou, mais uma vez, desonrar-nos com a alcunha de país que não perde uma oportunidade de perder oportunidades.

Depois de um bom caminho em 2023, o risco de tomarmos a trilha errada voltou. Entre cacofonias, ruídos e sinais, a política externa adotou uma retórica desastrada, criando incidente diplomático com Israel e ameaçando a histórica neutralidade brasileira; dividendos extraordinários da Petrobras foram retidos; conselheiro da Vale saiu citando interferência política; trabalhadores ligados a aplicativos de delivery quase sofreram uma regulamentação que nem eles mesmos queriam; a surpresa positiva com a arrecadação em janeiro e fevereiro foi recebida com discurso em prol de mais gastos, entre outras intervenções inadequadas.

Se insistirmos na colérica polarização e nas ideias velhas que já deram errado, incorreremos num risco ainda maior do que aquele contemplado por Eduardo Giannetti: perderemos a vitalidade iorubá sem nem mesmo termos nos civilizado. Será mesmo que o vira-lata está condenado a perder oportunidades numa espécie de eterno retorno? Podemos muito mais do que isso.

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