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Cinema

O cinema exuberante de Karim Aïnouz disputa a Palma de Ouro em Cannes

Brasileiro chega ao segundo ano consecutivo na corrida pela premiação com Motel Destino, único filme latino-americano até agora a conseguir uma vaga na competição

Motel Destino: descrito como um thriller erótico, o filme representa a volta ao  Ceará natal de Aïnouz (Diulgação/Divulgação)
Motel Destino: descrito como um thriller erótico, o filme representa a volta ao Ceará natal de Aïnouz (Diulgação/Divulgação)
Mariane Morisawa

Mariane Morisawa

20 de abril de 2024 às 16:04

O sonho de todo cineasta que se preze é, um dia, disputar a Palma de Ouro no Festival de Cannes, o mais importante do mundo. Pois o brasileiro Karim Aïnouz vai realizar esse desejo pelo segundo ano consecutivo, com Motel Destino, único filme latino-americano até agora a conseguir uma vaga na disputada competição da 77ª edição, entre 15 e 24 de maio. O cearense de 58 anos de idade concorre ao lado de diretores famosos, como Francis Ford Coppola (de O Poderoso Chefão), David Cronenberg (de Senhores do Crime) e Yorgos Lanthimos (de Pobres Criaturas).

No ano passado, Aïnouz participou da competição do Festival de Cannes com Firebrand, sua primeira produção internacional falada em inglês. O longa-metragem, que ainda não teve estreia comercial no Brasil, conta a história de Catherine Parr (Alicia Vikander), a última mulher do rei Henrique 8º (Jude Law). Mesmo sendo um drama histórico britânico, há pitadas de brasilidade ali.

Em Motel Destino, o diretor promete apostar tudo na exuberância, nas cores, no calor, na dramaticidade, na paixão, na sensualidade que são características de sua obra. Descrito como um thriller erótico, o filme representa a volta ao seu Ceará natal. Aïnouz, que mora em Berlim, não filmava no Estado desde Praia do Futuro (2014), estrelado por Wagner Moura. O Motel Destino do título fica em uma beira de estrada na costa cearense e é administrado por Elias (Fábio Assunção), um sujeito bruto, e sua mulher Dayana (Nataly Rocha). Quando o jovem Heraldo (Iago Xavier) chega repentinamente, fugindo depois de um crime dar errado, Dayana acaba deixando o rapaz ficar. A relação entre os dois é tanto perigosa quanto possivelmente libertadora.

Motel Destino é o sexto filme exibido por Karim Aïnouz em Cannes. O primeiro foi sua estreia na direção de longas-metragens, Madame Satã (2002), um destaque do chamado cinema da retomada, o período entre 1995 e 2002 em que as leis de incentivo à cultura permitiram a volta da produção nacional, depois de anos de paralisação. Aïnouz tinha sido roteirista de outra obra importante da época, Abril Despedaçado (2001), de Walter Salles.

Madame Satã, que fez sua estreia mundial na mostra Um Certo Olhar, seção paralela da seleção oficial do Festival de Cannes, é um drama biográfico sobre João Francisco dos Santos (1900-1976), interpretado por Lázaro Ramos, em seu primeiro grande papel. Figura conhecida no bairro da Lapa, no Rio de Janeiro, Madame Satã era travesti, artista, assumidamente homossexual. Foi preso diversas vezes, muitas por brigas que terminavam mal. Ali, Karim Aïnouz imprimiu seu estilo, fazendo um cinema sensorial, quente, cheio de suor e erotismo.

Em 2006, o diretor lançou seu segundo longa, O Céu de Suely, uma ampliação de Rifa-me, seu curta de 2000. Hermila Guedes é Suely, que sonha deixar a pequena Iguatu, no interior do Ceará, em busca de uma vida melhor no sul do país. Para conseguir o dinheiro da viagem, decide rifar o próprio corpo, oferecendo ao vencedor uma noite com ela. O filme, que foi exibido na mostra Horizontes do Festival de Veneza, traz uma visão do sertão diferente daquela que o cinema brasileiro costuma mostrar, com uma protagonista que não teme tomar uma decisão polêmica para tentar escapar de sua condição.

Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo (2009), também exibido na seção Horizontes em Veneza, foi dirigido por Aïnouz em parceria com Marcelo Gomes. Os dois tinham colaborado nos roteiros de Madame Satã e de Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), dirigido por Gomes. O longa utiliza de maneira poética imagens documentais coletadas pelos diretores em viagens pela Bahia, Sergipe, Ceará, Alagoas e Pernambuco, misturadas a um narrador ficcional, o geólogo José Renato (Irandhir Santos). Pode parecer pouco, mas o filme emociona com esse homem dividido entre um amor e sua paixão pelo trabalho.

O próximo trabalho de Karim Aïnouz foi uma encomenda. O Abismo Prateado (2011), que estreou na mostra paralela Quinzena dos Realizadores, em Cannes, surgiu do projeto de transformar canções de Chico Buarque em filmes. A escolhida, aqui, foi “Olhos nos Olhos”. De novo, o cineasta aposta em uma imersão sensorial para contar a história de Violeta (Alessandra Negrini), que perambula pelas ruas de Copacabana depois de seu marido deixá-la repentinamente, após 14 anos de casamento.

Praia do Futuro (2014) foi rodado em Fortaleza e Berlim e estreou na competição do Festival de Berlim. Donato (Wagner Moura) é salva-vidas na Praia do Futuro. Depois de conhecer o alemão Konrad (Clemens Schick) e se apaixonar, decide abandonar tudo e partir para Berlim. Anos mais tarde, Ayrton (Jesuíta Barbosa) vai à Alemanha para reencontrar seu irmão mais velho. Donato é uma espécie de versão ficcional do próprio Karim Aïnouz, dividido entre o calor do Ceará e o gelo da Alemanha, um homem em eterno estado de deslocamento.

Em Aeroporto Central THF (2018), exibido no Festival de Berlim, Karim Aïnouz voltou-se para o documentário, retratando a transformação de um aeroporto construído por Adolf Hitler no centro de Berlim em campo de triagem de refugiados.

No ano seguinte, o diretor voltou ao Festival de Cannes, ganhando o prêmio da mostra Um Certo Olhar, a segunda mais importante do festival, com A Vida Invisível. Baseado no romance A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha, fala sobre duas irmãs no Rio de Janeiro de 1950. Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Julia Stockler) são inseparáveis. A primeira sonha ser pianista, mas acaba sendo forçada a se conformar e a se casar. A segunda, doida para viver um grande amor, termina sendo afastada à força da irmã que tanto ama. Colorido e apaixonado, é um melodrama tropical que arrebata ao mostrar duas mulheres vítimas do patriarcado.

Depois do sucesso de A Vida Invisível, Karim Aïnouz resolveu fazer uma viagem ao país natal de seu pai, a Argélia. Aïnouz é filho de uma cientista cearense com um engenheiro argelino, que se envolveram e se casaram quando estudavam nos Estados Unidos. O cineasta só conheceu o pai aos 18 anos, em Paris. A viagem acabou rendendo dois documentários. Nardjes A. (2020), exibido na mostra Panorama em Berlim, foca na personagem do título para narrar os protestos do povo argelino contra seu governo. Já O Marinheiro das Montanhas (2021), apresentado nas Sessões Especiais em Cannes, é um diário de viagem do cineasta à vila onde seu pai nasceu, fazendo uma costura entre a história de seus pais, suas memórias e a Guerra de Independência da Argélia.

A Vida Invisível abriu as portas do mercado internacional para o cineasta brasileiro. E assim ele aceitou fazer outra história de uma mulher aprisionada por suas circunstâncias e lutando contra elas em Firebrand, que disputou a Palma de Ouro no ano passado. A sueca Alicia Vikander, ganhadora do Oscar por A Garota Dinamarquesa (2016), é Catherine Parr, a sexta e última mulher do rei Henrique 8º, interpretado por Jude Law, que concorreu ao Oscar duas vezes, por O Talentoso Sr. Ripley (2000) e Cold Mountain (2003).

Parr foi a única esposa a sobreviver a Henrique 8º, um tirano que mudou as leis para anular o casamento com a primeira mulher, ordenou a decapitação de duas, divorciou-se de outra e viu mais uma morrer logo após o parto. Parr sobreviveu a três anos, seis meses e 16 dias ao lado do rei, até a morte dele, ajudando a criar seus filhos e sendo a primeira rainha a publicar um livro sob seu nome na Inglaterra.

Firebrand tem algumas das marcas de Karim Aïnouz, que filma desejo e intimidade muito bem. Mas é inegável que é uma obra mais contida. Em Motel Desejo, todos os elementos são favoráveis a um retorno a seu cinema caloroso, apaixonado, sexy, brasileiro que vai esquentar a Croisette.

Onde assistir:

Madame Satã (2002), no Globoplay

O Céu de Suely (2006), na Netflix e no Globoplay

Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2010), na Reserva Imovision

O Abismo Prateado (2011), no Globoplay

Praia do Futuro (2014), no Globoplay

Aeroporto Central THF (2018), disponível para aluguel no Apple TV e Google Play

A Vida Invisível (2019), no Paramount+ e Globoplay

Nardjes A. (2020), indisponível

O Marinheiro das Montanhas (2021), no Globoplay

Firebrand (2023), estreia a definir

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Mariane Morisawa

Jornalista e crítica de cinema, Mariane Morisawa tem mais de 25 anos de experiência, com passagens por Folha de S. Paulo, Elle, Marie Claire e IstoÉ Gente. Desde 2008 colabora com as editorias de cultura dos principais veículos do país